#16 – réquiem para o tédio
sobre a vida corrida, a rotina cheia e o crime das redes sociais
sem tempo, irmão
olhar a agenda do celular repleta de tarefas a cumprir, por vezes, causa angústia; menos pelo receio de não dar conta de tudo (a gente sempre tenta equilibrar os pratinhos da vida adulta), e mais por não ver ali nenhum espaço livre. a exaustão mental começa já na largada e, ao longo do caminho, vai ganhando a companhia do cansaço físico. o saldo é o esgotamento completo. deitar-se para relaxar e dormir? não, apagar. isso se o cérebro ansioso não inventar de antever o dia seguinte.
como a atriz e poeta elisa lucinda ensinou, não falo mal da rotina. no campo das ideias, gosto dela, inclusive. eu me sinto reconfortado em saber de antemão as atividades vindouras. por não confiar na memória, anoto tudo no celular (com direito a alarme para não correr risco de esquecer). tudo mesmo: de consultas médicas a idas ao supermercado (e lista de compras, claro!), dos remédios a tomar aos dias de correr, pegar sol ou fazer comida.
ter tudo organizado facilita o processo. ao acordar, não perco tempo pensando na programação do dia. basta consultar e seguir o script. o risco é cumprir os afazeres de modo mecânico, o que frequentemente ocorre. de uma tarefa a outra, o cansaço fica camuflado sob o manto do piloto automático e só é percebido no fim do dia. aí já é tarde demais para criar alguma pausa.
às vezes, nem o fim de semana – que deveria ser de descanso – escapa (e olha que eu nem estou falando dos plantões). até as opções de lazer acabam espremidas na maratona do “já que”: já que estou no museu x, por que não aproveitar para conferir outra exposição, no espaço y, que fica bem ao lado? já que vim até aqui, por que não dar uma esticadinha naquela feira de antiguidades um pouco mais adiante? e assim o tempo vai sendo preenchido de forma quase inconsciente.
preenchendo o vazio
a correria da rotina já foi tema de tantas newsletters que seria impossível listar todas aqui (vocês sabem quem são). é, sem dúvida, um sintoma dos tempos atuais: vivemos perigosamente à beira do colapso, sempre tentando equilibrar mais um pratinho. uma hora, fica pesado demais. sorte de quem consegue perceber a tempo de evitar a queda.
pensando nas tarefas de que posso abrir mão para tornar a rotina menos pesada, eu me lembrei do tempo em que havia espaço até para sentir tédio. na infância e na adolescência, ele era mais frequente: surgia quase sempre depois do almoço, uma vez cumprida a rotina escolar, os deveres de casa e um pouco de videogame. nada parecia suficiente para preencher as horas vagas.
desconfio que as redes sociais tenham ocupado este espaço com camadas perversas de ansiedade. elas matam o tédio espelhando vidas ilusórias, criando desejos irreais e provocando uma sensação vazia de pertencimento. mas sejamos honestos: deste crime, somos todos cúmplices.
se você gostou desta newsletter, que tal dizer isso ao mundo?
enquanto eu não volto...
você pode aproveitar para curtir estas dicas:
🎬 o jogo do diabo, reality show da netflix
🎧 lágrimas no mar (ao vivo), álbum de arnaldo antunes e vitor araújo
🎧 beijo beijo, música de almério, mariana aydar e juliana linhares
🎧 sorria, você está sendo executado, episódio do podcast rádio escafandro
📝a volta, newsletter de andrea
por hoje é só. até mais!
Pedro,
De fato é o fim do tédio, assassinado pelas redes sociais e substituído por inquietações. Esta foi a parte que mais me chamou atenção em sua interessante abordagem.
Por coincidência, em minha crônica de hoje trato do cotidiano, mas sob uma outra ótica.
Parabéns pelo texto!
Abraços
Adorei e me identifiquei muito com o texto. Tem fim de semana que eu sei que meu corpo precisa de descanso, mas lá está a agenda lotada sem respiros. Quase sinto culpa quando não estou fazendo nada. Isso é enlouquecedor.