o consultório
meu ano começa quase sempre com uma peregrinação médica, passando por várias especialidades. ou seja, troco o check-in num hotel em uma praia paradisíaca por um check-up (torcendo para estar tudo bem). desta vez, a primeira parada foi no gastroenterologista (profissão que eu já não escolheria só pela dificuldade em pronunciar). é que, em meados de dezembro, fui parar no pronto-socorro e a plantonista recomendou investigar se havia sido apenas uma gastroenterite ou algo mais sério, como doença de crohn (se eu nem conheço esse homem, como vou pegar uma doença dele?).
não joguei no google para saber se era câncer, mas também não deixei pra lá. fiz roleta-russa no guia do plano de saúde, apontei o nome de um médico que me pareceu confiável (com sobrenome ainda mais impronunciável que gastroenterologista) e fui.
não marquei o primeiro horário, como costumo fazer, mas a recepção estava estranhamente vazia. depois de preencher a ficha, a recepcionista pediu para que eu me instalasse em uma cabine. sim, cabine; cada paciente tinha sua própria sala de espera. achei chique, mas também me senti naqueles anúncios de clínica para impotência sexual (ou para doação de espermatozoides).
como alegria de pobre dura pouco, mal tive tempo de pegar uma água e relaxar no meu box privativo com direito a tv a cabo (com 285 canais, mas que está sempre na globo). logo veio a recepcionista e me conduziu para o consultório. consulta rapidinha, não doeu e não doei (não pude evitar os trocadilhos). saí de lá confiante de que está tudo bem e com pedidos para exames.
os exames
pedidos para exame de sangue são sempre aflitivos: aquela lista interminável de palavras e siglas cujos significados um dia a gente decorou para a prova de biologia e hoje já não faz a mais vaga ideia (desculpa, tia ângela).
para fazer o hemograma completo, eu dou o sangue (eita, outro trocadilho ruim) já na largada. a hipocrisia impera: começo uma dieta na saída da consulta, com a ilusão de que dois ou três dias serão suficientes para redimir os pecados gastronômicos. bobagem! a medicina avançou tanto que os exames são capazes de mostrar com precisão até o que eu comi naquele seis de abril de 2004.
exame de sangue eu tiro de letra (tgo, tgp, hdl, vldl, ldl, jbl...). o problema é sempre o de fezes. desconheço situação mais constrangedora. vou poupar a gente de descrições gráficas (dinheiro não, mas bom senso eu ainda tenho), mas relembre aí as vezes (com v de vitória, tá?) em que você precisou fazer tal exame. o constrangimento já começa no momento de escolher a técnica menos vexatória para a coleta. tudo piora quando se tem um intestino sádico, que banca o tímido, se faz de difícil com uma prisão de ventre súbita e não deixa passar nem o sinal do wi-fi.
o laboratório
como desgraça pouca é bobagem, não basta fazer a coleta. é preciso levar o material para o laboratório, aquele ambiente sempre frio e impessoal, com a televisão no mudo que obriga os pacientes a apertarem a vista para ler o closed caption, as revistas de celebridades estampando na capa casais que se separaram há anos e as máquinas de café afrontando quem está em jejum (e é saber que tem exame de sangue para o estômago resolver sentir fome às quatro da manhã).
peguei a minha senha e esperei, esperei e esperei... porque, claro, toda a cidade parece ter ido fazer o exame no mesmo dia. e, obviamente, todo mundo tinha prioridade, menos eu. depois de muito aguardar, minha senha finalmente apareceu no painel. demorou mais uma eternidade até que a atendente colocasse no sistema todos aqueles itens do pedido.
acho que passou tanto tempo que eu cheguei à terceira idade. não tive direito à prioridade (afinal, eu já estava sendo atendido), mas fiquei meio surdo e não entendi bem a pergunta que a atendente me fez. pedi que repetisse, o que ela fez com um sorriso nos lábios e aumentando bastante a voz: “trouxe as fezes?”.
agora, sim, eu ouvi (e todo o laboratório). sentindo minhas bochechas em chamas, respondi para dentro, com um fiapo de voz, que sim. foi a vez de a atendente não escutar. ela respirou fundo, desfez o sorriso e – em tom passivo-agressivo – recapitulou a pergunta: “trouxe ou não trouxe as fezes?”.
encabulado, eu me rendi: sim, sim, sim, mil vezes sim, eu trouxe. no fundo, o objetivo sempre foi provocar o rubor, porque o material só deveria ser entregue na sala de coleta. ou seja, a atendente queria apenas exercer seu pequeno poder, uma espécie de constrangimento recreativo. então, ela pediu que eu assinasse a guia do exame (a admissão da derrota) e me entregou um saquinho de lanche. é muito cinismo do laboratório achar que vai compensar tanto sofrimento com um lanchinho cheio de produtos industrializados ricos em sódio, açúcar e gordura trans (que podem adulterar os próximos exames, quase um esquema de pirâmide).
a coleta
fui enxotado para uma nova sala de espera. enquanto aguardava o momento da coleta, ouvia as crianças mais escandalosas do bairro urrando para fazer o exame de sangue. eu era a personificação da derrota: sem paciência, com frio e fome, segurando um lanchinho mequetrefe numa mão e um potinho com bosta na outra.
o provérbio diz que não há mal que sempre dure (nem bem que nunca se acabe, mas essa parte nunca chega) e, finalmente, chegou a minha hora. assim que eu me livrei do potinho entreguei o material, recebi uma última pergunta constrangedora: “colheu quando?”. sério mesmo que o questionamento se fazia necessário? e, se fazia, por que a técnica não anotou a informação em lugar nenhum?
ela pediu que eu abrisse e fechasse a mão livre enquanto seguia o protocolo: confirmar o nome, a idade e a cidade de onde está falando (referência de velho), mostrar que todo o material era descartável, esterilizar o braço, prometer que seria apenas uma picadinha (isso deve estar no protocolo também, porque todas fazem tal promessa), espetar a agulha e encher os tubinhos, um a um.
não tenho problemas com exame de sangue. nunca tive. e confesso que acho até bonito ver o sangue tão vermelho (peraí, se meus pais me tratavam como um príncipe, não deveria ter sangue azul?) esguichando nos tubinhos. saber que estou de olho deixa alguns profissionais da coleta nervosos. nestas horas, eu me sinto um pouco vingado pelo constrangimento que passei até chegar ali (é a tal da reparação histórica?). para quem tem medo, é mais um momento de tortura, já que narrar o protocolo obriga o paciente medroso (cagão pode ser um bom sinônimo se ele também tiver ido fazer o exame de fezes) a enfrentar a agulha.
depois de todo esse périplo, finalmente fui embora do laboratório, torcendo para que nenhum parasita fosse encontrado no potinho que deixei lá e que todos os componentes do meu sangue estivessem dentro dos valores de referência. e ainda não eram oito da manhã...
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enquanto eu não volto...
você pode aproveitar para curtir estas dicas:
girls, música do filme a cor púrpura, de v. bozeman e dyo com trecho em português cantado pela ludmilla.
museu de arte do rio está com pelo menos três exposições imperdíveis: funk: um grito de ousadia e liberdade, que conta a história do gênero; laroyê, grande rio, sobre o desfile campeão do carnaval de 2023 sobre exu (com direito a partes de alegorias e belíssimos croquis de fantasias); e ònà irin: caminho de ferro, que traz joias da artista baiana nádia taquary e tem uma das salas de exposição mais bonitas que eu já vi na vida.
habitando a internet sem cnpj, da newsletter de virginia valbuza: “tudo que consumimos online hoje é feito para parecer simples e espontâneo, quando, no fundo, é totalmente artificial. tudo é feito para te convencer a produzir conteúdo que, na real, vai virar publicidade. tudo é feito para te induzir à ideia de que é muito fácil trabalhar na internet e que só você está ficando para trás. e, ao mesmo tempo, esse espaço vem se tornando cada vez mais hostil e desumano.”
'porei por escudo o coração', coluna de josé eduardo agualusa no jornal o globo: “uma criança abrir um livro como quem procura um tesouro — e encontrar um tesouro! —, isso é algo que fica para a vida.”
no ano passado, eu não emagreci. e aí?, da newsletter de vanessa guedes: “mudar a nossa cabeça e o modo como vemos o corpo é tudo que podemos fazer para nos ajudar. mas não é a solução para o fim do auto-ódio. não adianta tanto assim a gente estar bem quando o resto do mundo não está.”
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por hoje é só. até mais! cuide-se!
Oii, Pedro. Depois conta para gente o que deu do estômago, não sei escrever o nome da patologia aqui, risos!
Evaristo Costa que falou sobre a doença de crohn dele mais cedo. Começo de ano é isso mesmo: check-in no médico!