#39 – um grito de socorro
sobre pedidos de ajuda, instinto de sobrevivência, egoísmo e covardia
uma dúvida
terminava de tomar café quando um grito atravessou o desjejum:
— socorro!
o primeiro impulso seria correr à janela e procurar pela mulher em perigo. a frustração viria em seguida: não encontrá-la, como já havia ocorrido outras vezes (é preciso podar as árvores que me impedem de ver a rua, além de demolir um prédio e – talvez – duas casas).
com a torrada, mastiguei a dúvida: quem sou eu diante de um pedido de ajuda? aquele que corre para acudir, mesmo sob risco de se pôr também em perigo, ou o tipo que apenas testemunha um acontecimento grave, sem esboçar reação?
a questão repentinamente posta à mesa era uma massa densa demais para ser engolida. havia risco de engasgo. ou indigestão. eu não tinha alternativa, senão triturá-la com os dentes até o mais miúdo detalhe.
salvar alguém há de ser o gesto mais genuíno de empatia, sobretudo quando se ajuda um desconhecido. não socorrer, porém, seria desumanidade, egoísmo, instinto de sobrevivência ou covardia?
humanidade
eu continuava sentado diante da mesa posta, o café e a torrada já frios, mas a dúvida queimando na boca. a mulher na rua gritou por socorro mais duas vezes, com a voz ainda mais aguda. da janela, para onde não fui desta vez, não conseguiria vê-la. do conforto da cadeira, do outro lado da sala, poderia ainda menos. estava sendo egoísta.
seguiu-se um grito de homem com palavras incompreensíveis. impossível saber se estava contra ou a favor da mulher, se algoz ou salvador. descer as escadas e alcançá-los na rua era plenamente possível, talvez suficiente para evitar uma eventual tragédia. mas eu estava sendo covarde.
desconhecia o real perigo enfrentado por aquela mulher. ela gritou por socorro, e não “fogo” ou “pega ladrão”, de modo a prejudicar a avaliação dos riscos que eu correria ao tentar ajudá-la. fosse ao encontro dela, estaria sujeito a que ameaças? no limite, poderia perder a vida? eram conjecturas, hipóteses levantadas pelo instinto de sobrevivência de um jovem avesso à ideia de morrer tão cedo.
há uma delegacia na rua. se eu ouvi o apelo, é bem capaz de que os policiais tenham escutado também. e, se cumprem a nobre missão de proteger, por amor, por ofício ou ambas as coisas, podem ter ido atrás da mulher. era por isso que torcia ao não ouvir mais nenhum grito.
oxalá ela esteja bem e em segurança, como eu neste apartamento, com café e torrada frios, mas palatáveis. mastigava com a fé de que agora conseguiria engolir. estava sendo demasiadamente humano.
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Dilemas desta ordem podem se multiplicar trazendo-nos angústia. O caso é que devemos estar preparados, previamente, para a ação humanitária de socorrer alguém a depender das circunstâncias (essencialmente quando tudo nos indica que "o caso é nosso"!).
Fugir de debater o que nos aflige todos os dias, coletivamente, é que não podemos deixar ocorrer, normalizar.
Outras questões podem ser debatidas: 1) Como "não temos ainda" uma brigada de emergência em nosso prédio, condomínio ou vizinhança alargada? 2) Quando devemos agir a sós ou em grupo? e, por último, 3) O problema alheio é ou não é também nosso?!
Lembrei-me que minha esposa, sempre atenta, conseguiu livrar uma vizinha, embriagada e transtornada, de matar-se enforcada... Felizmente!
Provavelmente estou no time dos covardes, se isso puder ser chamado de covardia.