
fisgado pelo estômago
há cerca de cinco anos, um gato preto e branco (frajola, para os mais entendidos de felinos) surgiu na casa de praia dos meus pais. costumava andar pelo muro ou se deitar em um canto na lateral menos acessada da varanda. ficava o mais distante possível de seres humanos (como julgar?) e de qualquer cachorro que ocasionalmente por ali circulasse. nunca deu intimidade a ninguém; fugia ao menor sinal de aproximação.
era, pois, um gato de rua, embora viesse à casa com frequência. um dia, foi pego em flagrante comendo a ração do cachorro. o fato de que talvez passasse fome amoleceu o coração dos meus pais, que passaram a colocar comida quando o viam chegar ao cair da tarde. se havia churrasco, separavam um pedaço de carne. quando era peixe, guardavam um pouco. para o caso de o cardápio não apetecer ou ser inadequado, compraram ração de gato. e até sachê. tudo, claro, em um comedor também adquirido exclusivamente para ele (azul e em formato de gato).
nada disso o comovia: continuava arisco. ainda assim, era como se fosse de casa. merecia, portanto, um nome. tratado como filho, foi batizado como o pai: luiz. para diferenciar um do outro, virou luizinho. obviamente, nunca atendia pelo nome (é provável que nem soubesse do batismo).
tinha um único interesse: saciar a fome. além do jantar, que já havia se tornado um hábito, passou a aparecer também ao amanhecer, quando era recompensado com um pires de leite. o ritual era sempre o mesmo: pulava o muro para a casa, parava atrás da parede lateral e mostrava apenas a cabeça.
então, alguém ia lhe dar comida. luizinho só se aproximava do prato se julgasse que o garçom da vez estava suficientemente distante. minha mãe não se conformava e tentava chegar perto, ao que o gato respondia mostrando os caninos e soprando o ar em tom de ameaça. além de tudo, era malcriado.
vez ou outra, ele aparecia com cicatrizes de briga: uma orelha rasgada, o nariz arranhado, mancando de uma pata. em outras ocasiões, mais raras, levava companhia para a refeição. que abuso!
fome hereditária
no começo deste ano, se a memória não me trai, apareceu com sinais de esporotricose. como tratar um gato que evitava contato? como levá-lo ao veterinário? as dúvidas atormentaram durante alguns dias, até que a única solução possível fosse descoberta: misturar o remédio na comida.
depois de meses de tratamento, as feridas pareciam (só conseguíamos observar de longe) cicatrizadas. não era possível saber se luizinho estava curado, mas estava visivelmente mais disposto.
tanto que virou pai. e um pai dedicado: passou a levar os quatro filhotes para comer também (e os bichinhos são esganados, viu?). ensinou-os também a manter distância segura dos humanos. vigiava-os brincar ao redor da casa. passava o dia inteiro com eles e até renunciava à comida pelos filhos.
os três filhotes (um desapareceu: não se sabe se foi capturado ou morreu) fazem a alegria da minha mãe: têm o charme dos bebês, são bastante traquinas e bem menos arredios (ela conseguiu até passar a mão em um deles). perambulam por todo o quintal, sobem no telhado e entram na casa se percebem a porta aberta.
luizinho, porém, voltou a ficar doente: tossia, espirrava e roncava de maneira estranha. raramente comia, não ligava mais para o leite. andava com cada vez mais dificuldade. não deixava, porém, de vigiar os filhos.
em uma tarde nublada, deitou-se no meio do gramado (um lugar onde nunca parava). não saiu quando a chuva começou a cair. minha mãe teve que escoltá-lo até um espaço seco: parou embaixo do carro. e ali deu seu último suspiro. no dia seguinte, o corpo enrijecido estava rodeado de moscas.
a retirada do corpo foi a única vez em que meus pais tocaram luizinho. nunca lhe fizemos carinho. nunca saberemos se o pelo era macio. ou se sentia cócegas na barriga. ficam um aperto no peito e uma saudade sem explicação. foram cinco anos de uma convivência tão próxima quanto distante, de um afeto difícil de medir (mútuo, será?) e de uma relação profunda, ainda que sem contato.
mas luizinho segue vivo na memória. e nos filhotes zanzando pelo quintal.
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enquanto eu não volto...
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por hoje é só. até mais!
Lamento por Luizinho. Cada dia mais inclinada a adotar um gato 😻
Que lindo e que triste - mas mais lindo que triste. Fico feliz que Luizinho foi amado e escolheu uma família que o cuidava, mesmo que de longe. Eu amo os gatos justamente pelo que você traduziu no texto. Sabem impor limites de formas únicas e demonstram afeto de maneiras inusitadas 😅