além do dicionário
não sei se li em um texto ou vi em um filme (minha memória anda péssima ultimamente) alguém dizer que determinado personagem era corpulento. a palavra ficou dançando na minha cabeça. não é muito usada no dia a dia. as expressões obeso e gordo (embora politicamente incorreta) são bem mais frequentes. faço, porém, uma defesa do uso de corpulento, adjetivo que faz jus ao significado, com a penúltima sílaba vagarosamente alongada a indicar o peso. corpulento é dessas palavras que traduzem com perfeição o que querem dizer.
é o caso, por exemplo, de ovo, cujas vogais repetidas têm a mesma e rotunda forma do objeto, deixando-o bem às claras (com o perdão do trocadilho). curtíssima, ovo parece uma palavra ainda em gestação, uma fase transitória para o que virá a ser a ave, igualmente curta e pertencente ao mesmo universo, tendo a leveza necessária para alçar voo. gosto também de pensar que não é mero acaso que a língua portuguesa tenha feito de voo um anagrama de ovo e que a letra v (uma ave voando?) esteja a unir as palavras.
por outro lado, há signos linguísticos que em nada correspondem aos significados, a não ser a própria abstração da definição no dicionário. ao fazer lembrar um inseto tão gracioso, embora nada tenha a ver com ele, joanete não parece uma palavra simpática demais para uma deformidade óssea nos pés? para ficar no campo médico, pus não provoca o asco necessário para nomear uma secreção purulenta (esta, sim, uma palavra condizente). é preciso operar com uma lógica mais acurada no batismo.
razão e sensibilidade
também se faz necessária, muitas vezes, a racionalidade cartesiana. como explicar que maior e menor tenham a mesma quantidade de letras quando indicam tamanhos diferentes? ou que a palavra grande é menor do que pequeno? com exceção da debochada expressão grande coisa, trata-se de um desvio lógico imperdoável, do qual infeliz e dificilmente abriremos mão.
vale também para ida e volta, sendo a primeira muito mais enxuta, embora a percepção sensorial aponte quase sempre no sentido de que as idas parecem muito mais longas do que as voltas.
há que pensar muito bem na hora de criar vocábulos, de modo a garantir uma designação fiel do que representam. sei que há uma série de regras para explicar a formação das palavras, mas muitas (quiçá as mais brilhantes) são fruto de observadores atentos.
é o caso de guimarães rosa, exímio mestre nesta lapidação. são do escritor mineiro alguns dos meus neologismos favoritos. um deles é embriagatinhar, verbo que expressa o modo de locomoção de uma pessoa completamente bêbada (e eu nem precisava dizer a definição para que você compreendesse). para não me alongar muito, cito mais um: circuntristeza, usado para se referir a um sentimento do entorno.
a combinação de palavras também cria belezas que extrapolam os significados mais imediatos. a volta do rio que passava atrás da casa de manoel de barros era uma cobra de vidro, que muito empobreceu quando o poeta descobriu que o nome daquele fenômeno geográfico era enseada. azar o da geografia, sorte da poesia brasileira ter alguém como manoel.
o autor, aliás, é pródigo em criar imagens de poética ímpar, como um abridor de amanhecer, um encolhedor de rios e um esticador de horizontes, todos citados em um único poema (cujo título é igualmente maravilhoso), “bernardo é quase uma árvore”.
uma das minhas maiores paixões na língua (e não apenas no português) é descobrir novas expressões idiomáticas. é uma delícia conhecer as origens e tentar identificar a lógica com que operam. umas são bem intuitivas, como bater na mesma tecla ou arrumar sarna para se coçar. outras, como cutucar a onça com vara curta e tirar o cavalinho da chuva, são mais imagéticas. algumas, como voltar à vaca fria, não parecem fazer sentido (mas acabo por simpatizar com elas). acontece com você também ou eu é que estou viajando na maionese?
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enquanto eu não volto...
você pode aproveitar para curtir estas dicas:
🎧 joão gilberto: a summer night, álbum de joão gilberto
🎧 milton + esperanza, álbum de milton nascimento e esperanza spalding
📝 a impossibilidade do adeus, de
📝 esse antigo medo de robôs, de
por hoje é só. até mais!
teu texto fez eu me lembrar de uma crônica pela qual tenho muito carinho, do Luis Fernando Veríssimo, um dos primeiros autores que me fizeram ter vontade de escrever: https://www.portuguesexperimental.com/post/defenestra%C3%A7%C3%A3o-de-lu%C3%ADs-fernando-ver%C3%ADssimo
Adorei as percepções, Pedro!!
"vale também para ida e volta, sendo a primeira muito mais enxuta, embora a percepção sensorial aponte quase sempre no sentido de que as idas parecem muito mais longas do que as voltas".