
era um sábado de folga quando me sentei para tomar café; pão com manteiga, porções generosas de queijo, pão doce com creme de confeiteiro (algo que anda tão raro de encontrar) e uma xícara de um expresso encorpado.
mal pus o prato e a mosca pousou do outro lado da mesa, como se convidada para o desjejum. seus muitos olhos vermelhos me encaravam, eu podia sentir. esfregava as patinhas da frente. o que significava aquele gesto? era sua forma de dizer que me desafiava ou que se preparava para a refeição?
agitei diversas vezes a mão para espantá-la. e, nas mesmas diversas vezes, ela tornou a pousar na mesa. estávamos ambos obstinados: a mosca em ficar para o café, eu em expulsá-la da casa.
aquele era o segundo dia de sua incômoda presença. tinha surgido na véspera, sabe-se lá como. todas as janelas têm telas contra insetos, que permanecem fechadas não importa o que aconteça. pouco razoável que tenha se espremido no capacho para entrar no apartamento por baixo da porta. mais improvável ainda a hipótese de uma geração espontânea, uma materialização irritantemente mágica.
não importavam as circunstâncias da chegada. não era bem-vinda. mas como fazê-la ir embora? abri as telas e janelas para que voasse para longe, para a vida, para o raio que a partisse. mas a bicha era tinhosa. voava, voava, voava, e não saía. eu quase ouvia seus zumbidos de deboche.
na sexta, venceu-me pelo cansaço. tendo de trabalhar, deixei que ficasse. no sábado, seria diferente. não pode uma mosca vencer um homem. menos ainda aquela, tão insolente, tão afrontosa, tão petulante... sairia por bem ou por mal. deveria me agradecer por dar a ela a opção de escapar ilesa do confronto.
atrapalhou-me o café o tanto que pôde. eu soprava, ela voltava. eu espanava as mãos, ela voltava. eu balançava a mesa, ela voltava. tinha a pequeneza de tamanho e de espírito: o propósito de sua curta vida era tão somente me irritar?
comi às pressas, contrariando a folga, decidido a acabar com a contenda. sem recolher a louça, levantei-me para abrir a tela. a sonsa não se fez de rogada: em vez de voar para a liberdade janela afora, avançou sobre as migalhas no prato.
voltei furioso para a mesa (mantendo a tela aberta, caso ela se desse por vencida e resolvesse partir). espantei-a com a mão um punhado de vezes, sem sucesso; determinada a comer os farelos, ela voltava ao mesmo ponto.
e se eu levasse o prato para perto da janela? eu confiei na estratégia. a mosca, não. voou até o limite do parapeito e recuou. esperei um tempo. quem sabe a fome a convencesse... nada! pousada na cortina, tão perto de ganhar o mundo, ousava querer ficar, mesmo que em litígio.
suspendi aquela batalha, mas não a guerra, para lavar a louça. não lhe daria mais qualquer chance de aproveitar as sobras do café que me impedira de degustar.
e não é que a infeliz se achou no direito de se indignar? aproveitou-se do fato de que eu estava com as mãos cheias de sabão para pousar em mim suas patinhas sujas e zumbir alto em tom de reclamação junto ao meu ouvido.
foi a gota d’água. tão logo acabei a tarefa, busquei o inseticida no armário e parti para cima dela. o som do spray parecia música. caída de costas no chão, a mosca esfregava as patinhas em rendição. tarde demais, disse a ela, paciência tem limite. e até que tive muita.
não tirei os olhos dela até confirmar o óbito (vai que a danada apenas se finge de morta e depois sai voando por aí?). recolhi o cadáver e pus na lixeira. estava vencida a guerra.
passei um novo café. agora sim aproveitaria a folga.
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Pedro, como eu amo suas crônicas! Imaginei como um filme.
Eu comprei uma raquete, pq quando dei por mim estava pagando aluguel para moscas.
Adorei ver a mosca esfregando as patinhas!